Livro de Leon Trotsky, publicado originalmente em 1937, no qual discute a mecânica da restauração do capitalismo na ex-URSS, sob a liderança nefasta de Stálin. Abaixo, trechos da obra (re)lançada em 2005, no Brasil, pela Editora Sundermann.
Capítulo I
“A Rússia entrou na via da revolução proletária, não porque a sua economia fosse a mais madura para a transformação socialista, mas porque essa economia já não podia se desenvolver em bases capitalistas. A socialização dos meios de produção tornou-se a condição necessária prévia para retirar o país da barbárie: esta é a lei do desenvolvimento combinado dos países atrasados”. [página 43]
“Caso a URSS viesse a fracassar, fruto de dificuldades internas, golpes externas e erros de direção (coisa que, esperamos nós, não aconteça), restaria, como garantia do futuro, o fato inabalável de que, somente graças à revolução proletária, um país atrasado deu, em menos de duas décadas, passos sem precedentes na História”. [página 45]
“Os povo do mundo terão ainda de pagar com novas guerras e novas revoluções os crimes históricos do reformismo”. [página 46]
“Os coeficientes dinâmicos da indústria soviética não têm similares. Mas nem hoje, nem amanhã eles resolverão todos os problemas. A URSS eleva-se de um nível terrivelmente baixo ao mesmo tempo em que os países capitalistas escorregam de um nível muito alto. A correlação de forças, hoje, é determinada não pela dinâmica de crescimento, mas, sim, pela contraposição de todo o poderio de ambos os campos de força, expressa na acumulação material, na técnica, na cultura e, sobretudo, na produtividade do trabalho humano. Quando nos debruçamos sobre o assunto desse ponto de vista estatístico, a situação torna-se brutalmente desfavorável para a URSS”. [página 46]
“Isso se deve ao fato de que, apesar das condições de estagnação e decomposição, o capitalismo mantém uma enorme vantagem com relação à técnica, organização e cultura do trabalho”. [página 46]
O diretor da indústria petroleira escreve: “Os diferentes setores do nosso ramo dispõem do mesmo maquinário que os americanos, mas a organização do trabalho na perfuração é atrasada, os quadros não são suficientemente qualificados”. A grande quantidade de acidentes é explicada pela “negligência, incapacidade e vigilância técnica insuficiente”. [página 47]
“Os êxitos brutos da indústria pesada são uma enorme conquista: somente sobre essa base se pode construir; entretanto a prova para a economia contemporânea é a produção de pequeníssimos detalhes que exigem cultura geral e técnicas avançadas. Nesta área, o atraso da União Soviética ainda é enorme”. [página 48]
Caracterizar os êxitos da industrialização apenas por índices quantitativos, sem os qualitativos, é o mesmo que querer definir a anatomia de um homem só pela estatura, sem indicar a medida do peito. Uma estimativa mais justa da dinâmica da economia soviética exige, ao mesmo tempo, uma crítica sobre a qualidade e a constatação de que os êxitos rápidos num domínio são de fato acompanhados por atrasos em outros. A criação de grandes fábricas de automóveis paga-se com a insuficiência e o abandono da rede rodoviária. “O abandono das nossas estradas é extraordinário”, constata o Izvetia, “não é possível fazer mais de 10 km/h numa estrada tão importante como Moscou-Yaroslav”. O presidente da Comissão Estatal de Planejamento afirma que o país conserva as tradições dos “séculos sem estradas”. [página 49]
“Sabe-se que toda a burocracia experimenta a necessidade orgânica de dissimular a realidade”.
[página 50]
“O mal essencial do sistema capitalista não reside no gasto excessivo das classes possuidoras, por mais repugnante que seja em si próprio, mas no fato de, para garantir o seu direito ao esbanjamento, a burguesia mantém a propriedade privada dos meios de produção e condena assim a economia à anarquia e à desagregação”. [página 53]
“A responsabilidade histórica desse estado de coisas cabe naturalmente ao passado pesado e sombrio da Rússia e a tudo aquilo que nos legou de miséria e de ignorância. Não havia outra saída em direção ao progresso do que a derrota do capitalismo”. [página 54]
Capítulo II
“Os três primeiros anos após a revolução foram de uma guerra civil aberta e dura. A vida econômica foi inteiramente subordinada às necessidades das frentes de combate. Em presença de uma extrema falta de recursos materiais, a vida cultural passou para segundo plano, caracterizando-se pela audaciosa amplitude do pensamento criativo, principalmente o pensamento de Lênin. Foi o chamado período do “Comunismo de Guerra” (1918-1921), paralelo histórico do “Socialismo de Guerra” dos países capitalistas. Os objetivos econômicos do governo dos Sovietes reduziram-se, principalmente, a sustentar as indústrias de guerra e a tirar partido das escassas reservas existentes para combater e salvar da fome a população das cidades.” [página 55]
“O conflito entre a realidade e o programa do comunismo de guerra, porém, revelou-se cada vez mais: a produção na parava de baixar, não só em virtude das consequências nefastas da guerra, mas também porque faltava aos produtores o estímulo do interesse individual. A cidade pedia aos campos o trigo e as matérias-primas sem dar nada em troca, a não ser pedaços de papel coloridos que chamavam dinheiro, devido a um velho hábito. O mujik (camponês russo em geral) enterrava as suas reservas. O governo mandava destacamentos de operários armados para recolher grãos. O mujik semeava menos”. [página 56]
“O erro teórico praticado pelo partido governante ficaria, contudo, completamente inexplicável se fosse perdido de vista que todos os cálculos se fundaram, nessa época, sobre o aguardar de uma vitória próxima da Revolução no Ocidente. Considerava-se como inevitável que o proletariado alemão, vitorioso, descontando um reembolso posterior em produtos alimentares e em matérias-primas, reabasteceria a Rússia dos Sovietes em máquinas, em artigos manufaturados, e lhe forneceria também dezenas de milhares de operários altamente qualificados, de técnicos e de organizadores. Sem dúvida que, no caso de a revolução ter triunfado na Alemanha (e somente a social-democracia impediu o seu triunfo), o desenvolvimento econômico da URSS, como o da própria Alemanha, teria prosseguido a passos de gigante, de tal modo que os destinos da Europa e do mundo se apresentariam hoje sob um aspecto muito mais favorável. Pode-se dizer, todavia – e com toda a certeza – que, mesmo nessa feliz hipótese, seria preciso renunciar à repartição dos produtos pelo Estado e voltar aos métodos comerciais.” [página 57]
“A indústria não podia desenvolver-se, num país que tinha esgotado as suas reservas e os seus depósitos, a não ser pedindo emprestados cereais e matérias-primas dos camponeses. Os “empréstimos forçados”, bastante consideráveis, sufocavam contudo o estímulo do trabalho: o camponês, não acreditando na felicidade futura, respondia às requisitações de trigo com a greve do plantio. Os empréstimos, bastante reduzidos, ameaçavam conduzir à estagnação: não recebendo produtos industriais, os camponeses só trabalhavam para a satisfação das suas próprias necessidades e voltavam às antigas formas de artesanato”. [página 58]
“Uma fraca produção de mercadorias forma inevitavelmente exploradores. À medida que o campo se recuperava, a diferenciação crescia no meio das massas camponesas: seguia-se o antigo caminho. O kulak, camponês rico, enriquecia mais depressa do que progredia a agricultura. A política do governo, cuja palavra de ordem era “Viremo-nos para o campo”, favorecia, na realidade, os kulaks. O imposto agrícola era muito mais pesado para os camponeses pobres do que para os ricos, que, ainda, obtinham crédito do Estado. Os excedentes de trigo, possuídos principalmente pelos camponeses mais ricos, serviam para escravizar os pobres e eram vendidos a preços especulativos à pequena burguesia das cidades. Bukharin, então teórico da facção dirigente, lançava aos camponeses o seu lema odioso: “Enriquecei-vos”! Na teoria, isso significa a transformação gradual dos kulaks em socialistas. Já na prática, o enriquecimento da minoria em detrimento da imensa maioria”. [página 58]
“Atrasando a industrialização e prejudicando a grande maioria dos camponeses, a política a favor do kulak, desde 1924-1926, revelou inequivocamente as suas consequências políticas: inspirou na pequena burguesia das cidades e dos campos uma consciência de classe extraordinária, levou-a a apoderar-se de numerosos Sovietes locais; assim aumentava a força e a segurança da burocracia; oprimia cada vez mais pesadamente os operários; acarretava a repressão total de toda a democracia no partido e na sociedade soviética.” [página 60]
“Enquanto o partido discutia ruidosamente, o camponês respondia à falta de mercadorias industriais com uma greve cada vez mais obstinada: abstinha-se de trazer os seus grãos para o mercado e de aumentar o plantio.” [página 61]
“A indecisão face às propriedades camponesas individuais, a desconfiança face aos grandes planos, a defesa de um movimento lento, o desdém pelo problema internacional, eis os elementos que, reunidos, formavam a “teoria do socialismo em um só país” formulada pela primeira vez por Stálin no decorrer do outono de 1924, após a derrota do proletariado na Alemanha: não nos apressarmos em matéria de industrialização, não nos indispormos com o mujik, não contar com a revolução internacional e, principalmente, preservar o poder burocrático de toda a crítica! A diferenciação dos camponeses era só uma invenção da oposição.” [página 63]
“Rykov, ainda chefe do governo, não estava só quando, em julho de 1928, declarava que “o desenvolvimento das propriedades rurais individuais constituía a tarefa mais importante do partido”. Stálin fazia eco: “Há pessoas”, dizia ele, “que pensam que a cultura das propriedades individuais teve a sua época e que não deve ser encorajada. Essas pessoas nada têm em comum com a linha geral de nosso partido”. Menos de um ano depois, a linha geral do partido nada tinha em comum com essas palavras: a aurora da coletivização completa despontava no horizonte”. [página 64]
“Seja como for, a guinada realizou-se. A palavra de ordem “Enriquecei-vos!” e a teoria de assimilação indolor do kulak pelo socialismo foram reprovadas, tardiamente, mas com a mais forte energia. A industrialização foi colocada na ordem do dia. O imobilismo, satisfeito por si próprio, deu lugar a uma impetuosidade que assustava. A palavra de ordem de Lênin, “alcançar e ultrapassar”, um tanto esquecida, foi completada nestes termos: “no menor tempo possível”. O plano quinquenal mínimo, já aprovado em princípio pelo Congresso do Partido, deu lugar a um novo plano, cujos principais elementos eram completamente extraídos da plataforma da Oposição de Esquerda, derrotada anteriormente. A usina hidroelétrica do rio Dinieper, antes comparada a um gramofone, retinha agora toda a atenção. [página 65]
“Vinte e cinco milhões de lares camponeses isolados e egoístas que, ainda ontem, eram os únicos motores da agricultura – fracos como o cavalo do mujik, mas motores de qualquer modo – tentou a burocracia substituir, de uma só vez, por duzentos mil conselhos de administração dos Kolkhozes, desprovidos de meios técnicos, de conhecimentos agrônomos e de apoio entre os próprios camponeses. As consequências destrutivas dessa aventura não tardaram a se fazer sentir, para durarem anos”. [página 68]
“A responsabilidade não cabe à coletivização, mas sim aos métodos cegos, aventureiros, segundo os quais foi aplicada. A burocracia nada tinha previsto. Até mesmo o estatuto dos Kolkhozes, que tentava ligar os interesses individuais do camponês ao interesse coletivo, só foi publicado depois do campo ter sido cruelmente saqueado”. [página 69]
“A precipitação dessa nova política resultava da necessidade de escapar às consequências da política de 1923-1928. Entretanto, a coletivização podia e devia ter um ritmo mais razoável e formas mais calculadas. Senhora do poder e da indústria, a burocracia podia ter regulado a coletivização sem pôr o país à beira da catástrofe. Podia-se e devia-se ter adotado um ritmo que melhor correspondesse aos recursos materiais e morais do país”. [página 69]
Capítulo III
“Marx entendia, em todo o caso, por “estágio inferior do comunismo” o de uma sociedade cujo desenvolvimento econômico seria, desde o início, superior ao capitalismo avançado”. [página 74]
“É, pois, muito mais exato chamar o atual regime soviético, com todas as suas contradições, não de socialista, mas de transitório entre o capitalismo e o socialismo, ou preparatório para o socialismo”. [página 75]
“Se o Estado em vez de agonizar, se torna cada vez mais despótico; se os mandatários da classe operária se burocratizam e a burocracia eleva-se acima da sociedade renovada, não é por causas secundárias, como as sobrevivências psicológicas do passado etc., é em virtude da inflexível necessidade de formar e de conservar uma minoria privilegiada enquanto não é possível assegurar a igualdade real”. [página 80]
“As tendências burocráticas que asfixiam o movimento operário dos países capitalistas deverão também se manifestar por todo o lado após a revolução proletária. Mas é perfeitamente evidente que, quanto mais pobre for a sociedade nascida da revolução, mais essa “lei” deve se manifestar-se severamente, sem rodeios; mais o burocratismo revestirá formas brutais; mais pode tornar-se perigoso para o desenvolvimento do socialismo. Não são os “restos”, em si próprios impotentes, das classes outrora dirigentes que impedem o Estado soviético de desaparecer e mesmo de se libertar da burocracia parasitária, como declara a doutrina puramente policial de Stálin. São fatores infinitamente mais poderosos, tais como as necessidades materiais, a falta de cultura geral, a dominação do “direito burguês” no domínio que interessa mais direta e vivamente a qualquer ser humano: o da sua sobrevivência”. [páginas 80/81]
“Explicando o ressurgimento da burocracia pela inexperiência administrativa das massas e pelas dificuldades nascidas da guerra, o programa do partido prescreve medidas puramente políticas para superar as “deformações burocráticas”: elegibilidade e revogabilidade em qualquer momento de todos os mandatários, supressão dos privilégios materiais, controle ativo das massas. Pensava-se que, por essa via, a burocracia estatal deixaria de ser um chefe para se tornar um simples agente técnico, aliás provisório, enquanto o Estado, pouco a pouco e sem barulho, deixaria a cena”. [páginas 82/83]
“Essa manifesta subestimação das dificuldades futuras se explica pelo fato de o programa se fundar, inteiramente e sem reservas, numa perspectiva internacional. “A revolução de Outubro realizou na Rússia a ditadura do proletariado. Abriu-se a era da revolução comunista universal”. Essas são as primeiras linhas do programa. Os autores desse documento não tinha por fim só a edificação do “socialismo em um só país” – essa ideia não vinha então à cabeça de ninguém e menos a Stálin que a qualquer outro – e não se preocupavam em saber qual o caráter que tomaria o Estado soviético se lhe fosse necessário cumprir sozinho durante vinte anos as tarefas econômicas e culturais desde há muito cumpridas pelo capitalismo avançado”. [página 83]
“A crise revolucionária do pós-guerra não conduziu, entretanto, à vitória do socialismo na Europa: a social-democracia salvou a burguesia. O período, que pareceu a Lênin e aos seus companheiros de armas uma curta “trégua”, tornou-se uma época histórica. A estrutura social contraditória da URSS e o caráter ultraburocrático do Estado soviético são as consequências diretas dessa singular dificuldade histórica “imprevista”, que conduziu, ao mesmo tempo, os países capitalistas ao fascismo ou à reação pré-facista”. [página 83]
“A redução do Estado a funções de “recenseamento e de controle”, diminuindo sem cessar as funções de coerção, como o programa exigia, supunha certo bem estar. Faltava essa condição necessária. A ajuda do Ocidente não chegava”. [página 83]
“Na sua resolução de 20 de agosto de 1935, o VII Congresso da Internacional Comunista certifica solenemente que a “vitória do socialismo, definitiva e irrevogável, e o fortalecimento em todos os níveis do Estado da ditadura do proletariado” são, na URSS, os resultados dos êxitos da indústria nacionalizada, da eliminação dos elementos capitalistas e da liquidação dos kulaks como classe. (...) Apesar dessa afirmação categórica, a declaração da Internacional Comunista é profundamente contraditória: se o socialismo venceu, definitiva e irrevogavelmente, não como princípio, mas como organização social viva, o novo “fortalecimento” da ditadura é um evidente absurdo. Inversamente, se o fortalecimento da ditadura responde às reais necessidades do regime, é porque estamos ainda longe da vitória do socialismo. Qualquer político realista, para não dizer marxista, deve compreender que a necessidade de fortalecer a ditadura, isto é, coação governamental, prova não o triunfo de uma harmonia social sem classes, mas o crescimento de novos antagonismos sociais. Qual a sua base? A penúria dos meios de existência, que é o resultado do baixo rendimento do trabalho. [página 85]
Capítulo IV
“Só se poderá falar da vitória real do socialismo a partir do momento em que o Estado não seja mais que um semi-Estado e o dinheiro comece a perder a sua força mágica. Isto significará então que o socialismo, libertando-se dos fetiches capitalistas, começa a estabelecer entre os seres humanos, relações mais límpidas, mais livres e mais dignas”. [página 89]
“As reivindicações de “abolição” do dinheiro, “abolição” do salário, “eliminação” do Estado e da família, características do anarquismo, só apresentam interesse como modelos de pensamento mecanicista. O dinheiro não poderá ser arbitrariamente “abolido”, assim como o Estado ou a família não poderão ser “eliminados”; eles terão de esgotar a sua missão histórica, perder todo o seu significado e desaparecer. O fetichismo do dinheiro só receberá o golpe de misericórdia quando o ininterrupto crescimento da riqueza social libertar a humanidade da sua avareza a respeito do minuto suplementar do trabalho e da sua humilhante inquietação quanto à quantidade das rações. Quando perder o seu poder de trazer felicidade e de lançar o ser humano no vazio, o dinheiro se reduzirá a um meio de contabilidade cômoda para a estatística e para o plano. Como consequência, se viverá no futuro, provavelmente sem necessidade dessa espécie de aval. Mas esse desejo poderemos abandoná-lo aos nossos netos que serão mais inteligentes que nós”. [página 90]
“O socialismo não poderia justificar-se unicamente pela supressão da exploração; é necessário que assegure à sociedade muito maior economia de tempo que o capitalismo. Se essa condição não fosse preenchida, a abolição da exploração não passaria de um dramático episódio desprovido de futuro. A primeira experiência dos métodos socialistas mostrou a vastidão de suas possibilidades. Mas a economia soviética encontra-se ainda longe de ter aprendido a tirar partido do tempo, a mais preciosa matéria-prima da civilização. A importância da técnica, principal meio de economia de tempo, não fornece ainda, na arena soviética, os mesmos resultados que na sua prática capitalista. Sobre esse ponto, decisivo para toda a civilização, o socialismo ainda não venceu. Todas as afirmações contrárias nada mais são do que fruto da ignorância e do charlatanismo.” [página 99]
“Quando o ritmo do trabalho é determinado pela caça ao rublo, as pessoas não trabalham de acordo com as suas “capacidades”, isto é, de acordo com o estado dos seus músculos e nervos, elas violentam-se. Rigorosamente, esse método só pode ser justificado com rigor invocando a dura necessidade; transformá-lo em “princípio fundamental do socialismo” é espezinhar o ideal de uma nova e mais elevada cultura, a fim de lançá-lo na lama habitual do capitalismo”. [página 101]
Capítulo V
“Os bolcheviques venceram a democracia pequeno-burguesa, não graças à previsão dos seus chefes, mas devido a um reagrupamento das forças, tendo enfim o proletariado conseguido arrastar contra a burguesia o campesinato descontente.” [página 106]
“É por demais conhecido que todas as revoluções, até hoje, suscitaram posteriormente reações e mesmo contrarrevoluções que, é certo, nunca conseguiram fazer regressar a nação ao ponto de partida, mas que lhe usurparam sempre uma parte importante de suas conquistas. Como regra geral, os pioneiros, os iniciadores, os dirigentes que, no primeiro período, se encontraram à cabeça das massas são as vítimas da primeira vaga da reação enquanto se veem aparecer, em primeiro plano, homens de segunda linha, unidos aos inimigos de ontem da revolução. Os duelos dramáticos dos principais grandes papéis na cena política ocultam mudanças nas relações entre as classes e, o que não é menos importante, profundas alterações da psicologia das massas, que ainda na véspera eram revolucionárias”. [página 107]
“A revolução é uma grande devoradora de energias individuais e coletivas. Os nervos não aguentam, as consciências vergam-se, os caracteres consomem-se. Os acontecimentos marcham demasiado depressa para que o afluxo de novas forças possa compensar os desperdícios. Assim, a fome, o desemprego, a perda dos quadros da revolução e a eliminação das massas dos postos dirigentes tinham provocado tal anemia física e moral que mais de trinta anos foram necessários para que de novo se levantassem.” [página 107]
“O caráter proletário da Revolução de Outubro resulta da situação mundial e de certa relação de forças no interior. Mas, na Rússia, as classes tinham-se formado no seio da barbárie czarista e de um capitalismo atrasado, e não tinham sido preparadas de encomenda para a revolução socialista. Muito pelo contrário, foi precisamente porque o proletariado russo, em muitos aspectos, ainda atrasado, conseguiu dar o salto em alguns meses sem precedentes na História, de uma monarquia semifeudal para uma ditadura socialista, que a reação foi obrigada, inelutavelmente, a fazer valer os seus direitos no interior das próprias fileiras. Ela cresceu no decurso das ondas que se seguiram. As condições externas e os acontecimentos alimentaram-se sem cessar. A uma intervenção sucedia outra. Os países do Ocidente não forneciam uma ajuda direta. Em vez do esperado bem-estar, o país viu-se instalar, por muito tempo, a miséria. Os mais notáveis representantes da classe operária tinham desaparecido durante a guerra civil ou, subindo alguns degraus, tinham-se desligado das massas. Assim sobreveio, após uma prodigiosa tensão de forças, de esperanças e de ilusões, um longo período de fadiga, de depressão e desilusão. O refluxo do “orgulho plebeu” teve como corolário um afluxo de mesquinharia e carreirismo. Essas marés conduziram ao poder uma nova camada de dirigentes [páginas 107 e 108]
“A desmobilização de um Exército Vermelho de cinco milhões de homens teve que representar, na formação da burocracia, um papel considerável. Os comandantes vitoriosos ocuparam importantes posições nos Sovietes locais, na produção e nas escolas, e isso para fazer chegar, obstinadamente, a todo o lado o regime que lhes tinha permitido vencer a guerra civil. As massas foram, por toda a parte, pouco a pouco, eliminadas da efetiva participação no poder.” [página 108]
“A situação internacional evoluía poderosamente no mesmo sentido. A burocracia soviética ganhava segurança à medida que a classe operária internacional sofria derrotas cada vez mais pesadas. Entre esses dois fatos, a relação não é unicamente cronológica, mas casual e recíproca: a direção burocrática do movimento contribua para as derrotas; as derrotas fortaleciam a burocracia”. [página 108]
“A história do bolchevismo é, na realidade, a da luta de frações. Como poderia uma organização autenticamente revolucionária, que tem como objetivo transformar o mundo e reúne sob os seus estandartes inconformistas, revoltados e combatentes cheios de temeridade, viver e crescer sem conflitos ideológicos, sem agrupamento e sem formações fracionais temporárias?”. [página 111/112]
“Lênin e os seus colaboradores tiveram como invariável principal preocupação preservar as fileiras do Partido Bolchevique dos males do poder. Contudo, a estreita conexão e, por vezes, a fusão dos órgãos do partido e do Estado causaram, desde os primeiros anos, certo prejuízo à liberdade e à elasticidade do regime interno do partido.” [página 112]
“Em março de 1921, no momento da sublevação de Kronstadt, que arrastou não poucos bolcheviques, o X Congresso do Partido viu-se obrigado a recorrer à proibição de frações, isto é, a estender à vida interna do partido dirigente o regime político do Estado. A proibição de frações era concebida, repetimo-lo, como medida excepcional, a cair em desuso logo após as primeiras melhorias da situação. O Comitê Central mostrava-se, aliás, extremamente circunspecto na aplicação da nova lei e, sobretudo, desejoso de não abafar a vida interna do partido”. [página 113]
“Desde 1922, tendo a sua saúde momentaneamente melhor, Lênin assustou-se com o crescimento ameaçador da burocracia e preparou uma fração contra a fração de Stálin, que se havia transformado no sustentáculo do aparelho do partido antes de se apoderar do aparelho de Estado. O segundo derrame, e depois a morte, não lhe deram a possibilidade de lançar as suas forças contra as da burocracia”. [página 113]
“Simultaneamente à teoria do socialismo em um só país, uma outra foi formulada, para uso da burocracia, segundo a qual, para o bolchevismo, o Comitê Central é tudo, o partido não é nada. Essa segunda teoria foi, em todo caso, realizada com muito mais êxito que a primeira. Aproveitando a morte de Lênin, a burocracia iniciou a campanha de “recrutamento de Lênin”. As portas do partido, até então bem guardadas, escancaram-se completamente: os operários, os empregados e os funcionários para ela se precipitaram em massa. Politicamente, tratava-se de reabsorver a vanguarda revolucionária em um material humano desprovido de experiência e de personalidade, mas, em contrapartida, acostumado a obedecer aos chefes. Esse desígnio foi alcançado, libertando a burocracia do controle da vanguarda proletária e o “recrutamento de Lênin” desferiu um golpe mortal no partido de Lênin. Os comitês tinham conquistado a independência que lhes era necessária. O centralismo democrático deu lugar ao centralismo burocrático. Os serviços do partido foram radicalmente remodelados. A obediência tornou-se a principal virtude do bolchevique. Sob o estandarte da luta contra a oposição, as substituições de revolucionários por funcionários. A história do Partido Bolchevique tornou-se a da sua rápida degeneração.” [página 114]
“Do Comitê Político do tempo de Lênin, não resta mais ninguém além de Stálin: dois dos seus membros, Zinoviev e Kamenev, que durante os longos anos da emigração foram os mais íntimos colaboradores de Lênin, cumprem, no momento em que escrevo, uma pena de dez anos de reclusão por um crime que não cometeram; três outros, Rykov, Bukharin e Tomsky foram completamente afastados do poder, embora se tenha recompensado a sua resignação concedendo-lhes funções de segundo plano; por fim, o autor destas linhas foi banido. A viúva de Lênin, Kroupskaia, é mantida sob suspeita, nunca tendo sabido, por mais esforços que tenha feito nesse sentido, adaptar-se ao Termidor. Os atuais membros do Comitê Político ocuparam, na história do Partido Bolchevique, lugares secundários. Se alguém tivesse profetizado a sua subida nos primeiros anos a revolução, eles próprios teriam ficado admirados.” [página 114]
“No Estado Proletário, em que a acumulação capitalista não é permitida aos membros do partido dirigente, a diferenciação é, de início, funcional, depois torna-se social. Não afirmamos que se torna uma diferenciação de classe, mas que se torna uma diferenciação social”. Então Rakovsky explica: “A posição social do comunista que tem à sua disposição um automóvel, uma boa habitação, licenças regulares e que recebe o salário máximo permitido pelo partido difere da do comunista que, trabalhando nas minas de carvão, ganha 50 a 60 rublos por mês”. [página 117]
“Definimos o Termidor soviético como a vitória da burocracia sobre as massas. Tentamos mostrar quais as condições históricas dessa vitória. A vanguarda revolucionária do proletariado foi, em parte, absorvida pelos serviços do Estado e, pouco a pouco, desmoralizada, em parte destruída durante a guerra civil e em parte eliminada e esmagada. As massas, fatigadas e desiludidas, nada mais apresentavam do que indiferença pelo que se passava nos meios dirigentes. Essas condições, por mais importante que sejam, de modo algum bastam para nos explicar como conseguiu a burocracia elevar-se acima da sociedade e tomar por muito tempo nas mãos os seus destinos, unicamente a sua vontade seria, em qualquer caso, insuficiente; a formação de uma nova camada social deve apresentar em causas sociais mais profundas”. [página 119]
“É ainda necessário coagir a burguesia”, escrevia Lênin em 1917, tratando do período que se devia seguir à conquista do poder, “mas o órgão de coação é já a maioria da população e não a minoria como até agora aconteceu. Neste sentido, o Estado começa a desaparecer”. Como se exprime esse desaparecimento? Primeiro, porque, em vez de “instituições especiais pertencentes à minoria privilegiada” (funcionários privilegiados, comandos do exército permanente), a própria maioria pode “preencher” as funções de coação. Lênin formula, mais adiante, uma tese indiscutível em forma axiomática: “Quanto mais as funções do poder se tornarem as de todo o povo, menos esse poder será necessário”. [página 119]
“O desaparecimento do Estado começa, segundo Lênin, no dia seguinte ao da expropriação dos expropriadores, isto é, antes que o novo regime tenha podido abordar as suas tarefas econômicas e culturais. Cada êxito no cumprimento dessas tarefas significa uma nova etapa da reabsorção do Estado na sociedade socialista. O grau dessa reabsorção é o melhor indicio da profundidade e da eficácia da edificação socialista”. [página 120]
“De qualquer modo, não se poderá pensar que indivíduos dispersos, privados de poder e propriedade, sonhando com a restauração do capitalismo, possam com “minúsculos especuladores” (não são mesmo simples especuladores fofoqueiros!), derrubar a sociedade sem classes. Ao que parece, as coisas não poderiam estar melhor. Mas, mais uma vez, por que se exerce então a ditadura de ferro da burocracia?”. [página 122]
Os sonhadores reacionários desaparecem pouco a pouco, é necessário acreditá-lo. Sovietes arquidemocráticos se encarregariam perfeitamente dos “minúsculos especuladores” e dos “mexeriqueiros”. “Não somos utopistas”, replicava Lênin em 1917 aos teóricos burgueses e reformistas do Estado burocrático, “de modo algum, contestamos a possibilidade e a inevitabilidade de excessos cometidos por indivíduos e, igualmente, a necessidade de reprimir esses excessos. Mas, para isso, não é de maneira nenhuma preciso um aparelho especial de repressão; o povo armado bastará e com tanto desembaraço e facilidade quanto uma multidão civilizada separa homens prestes a brigar ou não deixar insultar uma mulher”. [página 122]
“A autoridade burocrática baseia-se na pobreza dos artigos de consumo e na luta que daí resulta contra todos. Quando os armazéns se encontram bem fornecidos de mercadorias, os clientes poderão aparecer a todo o momento. Quando as mercadorias escasseiam, os compradores são obrigados a esperar à porta. Logo que a fila de pessoas se torna muito longa, impõe-se a presença de um agente da polícia para manter a ordem. Este é o ponto de partida da burocracia soviética. Ela “sabe” a quem dar e quem deve esperar.” [página 123]
Capítulo VII
“A Revolução de Outubro cumpriu honestamente a sua palavra no que se refere à mulher. O novo poder não se contentou em dar à mulher os mesmos direitos jurídicos e políticos do homem, fez também – e muito mais do que isso – tudo o que podia, e de qualquer modo infinitamente mais do que qualquer outro regime, para lhe dar acesso a todos os domínios econômicos e culturais.”
[página 147]
“A revolução fez um esforço heroico para destruir o chamado “lar familiar” – instituição arcaica, estagnada e rotineira, na qual a mulher das classes trabalhadoras era condenada a trabalhos forçados da infância até a morte. A família, considerada como uma pequena empresa fechada, devia ser substituída, segundo a intenção dos revolucionários, por um sistema completo de serviços sociais: maternidades, creches, jardins de infância, escolas, restaurantes, lavanderias, prontos-socorros, hospitais, casa de repouso, organizações desportivas, cinemas, teatros etc. A absorção completa, por parte da sociedade socialista, das funções econômicas da mulher, ligando toda uma geração pela solidariedade e assistência mútua, devia levar a mulher, e portanto o casal, a uma verdadeira emancipação da dominação secular. Enquanto essa obra não tiver sido realizada, quarenta milhões de famílias soviéticas se manterão vítimas dos costumes medievais, da sujeição e da histeria da mulher, das humilhações cotidianas à criança, das superstições deste e daquele. Sobre isso não há ilusões. É precisamente por isso que as sucessivas modificações do estatuto da família na URSS são as que melhor caracterizam a verdadeira natureza da sociedade soviética e a evolução das camadas dirigentes.” [página 148]
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