Publicado em 2004 pela Editora Sundermann, o livro de autoria de José Welmowicki analisa como a palavra cidadania passou a
integrar o vocabulário de muitos que se reivindicam de esquerda, ao
mesmo tempo em que foram sendo deixadas de lado expressões como luta de
classes e socialismo.
“Assim pensada, configura uma estratégia que afirma, em primeiro lugar, o cidadão, sem uma clivagem de classe, a partir de supostos interesses comuns a todos os homens na melhoria social, e que poderiam, uma vez assumidos pela sociedade, superar a desigualdade entre as classes.” [página 12]
“Cada um no seu lugar poderia contribuir para melhorar o país, sem que a estrutura econômico-social fosse revolucionada. Sindicatos, empresários, bancos, governos, todos enfim, poderiam trabalhar pela cidadania e unir esforços pelo bem coletivo.” [página 12]
“... O classismo e a recusa da exploração capitalista sendo substituídos pela colaboração de classes e pela aceitação do status quo”. [página 13]
“Nada mais atual do que colocar em discussão os pressupostos daqueles que veem como objetivo para o movimento operário apenas a busca de mais ou melhores resultados, aceitando a ordem do capital e o neoliberalismo ou ainda de buscar apenas ser interlocutores ou gestores respeitados, comparados ao que foi o movimento que os projetou para a frente da cena política a partir dos anos 70”. [página 14]
“O primeiro grande teórico do liberalismo econômico, Adam Smith, em seu livro mais importante, A Riqueza das Nações, já defendia claramente os pressupostos necessários para o livre desenvolvimento do capitalismo, para que as travas a ele fossem eliminadas. Uma das condições mais importantes para ele era impedir qualquer organização de classe. Cabia a cada cidadão, como indivíduo, buscar sua melhor recompensa no mercado.” [página 15]
“Para Adam Smith, a associação de classe é nefasta, pois vai contra a liberdade individual, cria obstáculos para a iniciativa privada, impede a livre concorrência. Ele era categoricamente contra qualquer associação da classe operária, pois, segundo sua concepção, aumentaria “artificialmente” o poder dos trabalhadores exigirem melhores salários. Smith afirmava isso, apesar de, nesse mesmo texto, reconhecer que os patrões faziam esse tipo de prática para tramar o rebaixamento dos salários de seus trabalhadores, ainda que de maneira oculta, e também que as leis e os juízes da Grã-Bretanha geralmente decidiam contra as aspirações dos trabalhadores.” [página 16]
“... Os operários poderiam “livremente” vender sua força de trabalho ao preço em que o mercado estivesse disposto a pagar, sem nenhuma interferência estatal, nem normas corporativas como as que haviam vigorado nas cidades medievais”. [página 17]
“Como parte da visão liberal, a qual Locke deu grande importância, deveria haver um conjunto de leis, um sistema jurídico que legitimasse essa sociedade e cujas resoluções fossem cumpridas obrigatoriamente por todos e na qual primasse a figura da “igualdade jurídica”, ou seja, “todos são iguais perante a lei”. Essa deveria ser a base para impor suas resoluções aos setores “sem propriedade”, mas sob a aparência de uma decisão neutra, em benefício de todos. Portanto, esse tipo de contrato era a forma de obrigar os despossuídos a aceitar os termos dos exploradores. A outra cara dessa igualdade formal era que se deveria impedir que os interesses de determinados grupos ou classes se sobrepusesse aos pretensos interesses da comunidade/sociedade. Daí a conclusão essencial para a concepção burguesa: se todos eram iguais perante a lei, era vedado o direito de “impor à sociedade” aquilo que não estivesse previsto em leis o que fosse contrário ao decidido pelos juízes”. [página 18]
“Para Rousseau, ao se promover a igualdade jurídica, todos deveriam se transformar em “cidadãos””. [página 24]
“Porém, a burguesia que tomou essa ideia para direcioná-la contra a nobreza e a monarquia resistentes à mudança, tratou de manter apenas a dimensão jurídica da igualdade.” [página 24]
“Na Inglaterra, quando surgiram as Trade Unions (os primeiros sindicatos) e as greves, foram consideradas uma ameaça à ordem, à liberdade e à cidadania e punidas severamente, com penas, prisões, violência estatal, etc. A burguesia percebeu que a força do movimento operário desde o início de sua aparição na história residia em sua ação coletiva ou, como chamavam no século XIX, o direito de coligação ou coalizão”. [página 25]
“A cidadania burguesa tinha de ser apenas da igualdade formal entre os indivíduos, que se materializava nos direitos civis, no direito de voto (depois de duras lutas, como as dos sans culottes na França, e dos cartistas na Inglaterra).” [página 26]
“A introdução da cidadania para a burguesia triunfante significava garantir a liberdade individual e em particular a “liberdade” do trabalhador como um indivíduo dono de si mesmo pronto para ser livremente explorado. Essa era a questão mais importante e devia ser colocada acima e contra qualquer tentativa de união de classe que almejasse lutar contra essa mesma exploração.” [página 27]
“Resumindo, a noção de cidadania se opõe à de identidade de classes, existem propostas e interesses distintos e opostos por trás de cada uma delas”. [página 28]
“Cidadania passa a ser uma categoria abstrata, desligada da práxis real e dos conflitos inerentes à sociedade capitalista. Ignora os processos reais que se dão na esfera da produção e da sociedade para falar de um homem abstrato. Portanto, joga um papel de cobertura ideológica, de capa para os conflitos de classe que atravessam a sociedade. Engels descreveu em A situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, como cada vez que crescia a indústria e os operários ingleses se associavam para lutar por melhores salários e o conflito contra os capitalistas se acirrava, ao mesmo tempo isso estimulava os trabalhadores a tomarem consciência de pertencer a outra classe “com interesses e princípios à parte e uma visão oposta à de todos os possuidores”. [página 29]
“Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, a burguesia de vários países, além da Inglaterra, se viu obrigada a recorrer a uma série de medidas que em outros tempos seriam chamadas de “socialismo” ou de “intromissão” do Estado na vida das pessoas, ao assumir os direitos sociais e serviços tais como educação, saúde, habitação, etc. Alguns cientistas sociais, como T.H Marshall, buscaram sistematizar conceitos que dessem conta dessa nova realidade e, para isso, trabalharam a noção de cidadania. Não para utilizar a mesma visão do século XVIII, mas construindo uma concepção que incluísse esses novos direitos sociais, ainda que colocando os limites que sua adoção não deveria ultrapassar – as fronteiras da sociedade capitalista. Algumas de suas ideias tiveram grande influência posterior na retomada da formulação de cidadania par tentar compreender a evolução social a partir dela. Para isso, Marshall tratou de fazer um histórico do desenvolvimento da cidadania moderna, dividindo-a em três partes: a civil, a política e a social.” [página 31]
“Marshall retoma o conceito de cidadania como um status de todos os que pertencem a uma determinada comunidade, que significaria uma igualdade como tal”. [página 32]
“A resposta dele é que a preservação de desigualdades econômicas se tornou mais difícil pelo enriquecimento do status de cidadania. Já não haveria tanto espaço para desigualdades, mas isso não significa que seu objetivo fosse a igualdade absoluta.” [página 32]
“Reflete um período em que conquistas no terreno dos direitos sociais se ampliaram e pareciam tender a uma generalização e a burguesia europeia esteve obrigada a ceder aos trabalhadores para poder estabilizar os regimes políticos”. [página 32]
“Por outro lado, se em determinado país se tentasse dar à cidadania social um conteúdo mais amplo do que o que de alguns serviços sociais (escola, saúde, etc) até incluir o trabalho, a casa, a produção, a gestão do tempo livre, a sua extensão progressiva entraria em choque com a autonomia do mercado e com as leis da acumulação capitalista. A distribuição dos recursos e das riquezas, orientada segundo o critério da cidadania social universalmente reconhecida, exigiria contrariar os movimentos individuais do capital e, portanto, forte intervenção estatal planificada; teria fatalmente que invadir a seara do lucro privado, o que os empresários e os banqueiros não estão dispostos a admitir”. [página 33]
“Os sindicatos deveriam se limitar a ser organismos para garantir a colaboração com o Estado e os empresários. Quem tentasse descumprir essa norma podia ser deposto de uma entidade ou até ser preso e processado. As atividades cotidianas do sindicato deviam se ater ao assistencialismo”. [página 34]
“Era preciso conquistar a democracia, mas com uma organização independente de classe, não se limitar a atuar apenas como cidadãos diluídos em uma ampla frente dirigida por determinados setores empresariais e pelo partido de oposição que se limitava a defender a redemocratização.” [página 65]
“O discurso da classe dominante e do Governo era justamente no sentido de que os trabalhadores não seguissem lutando, já que havia um novo regime político, que o momento era de entendimento, ou de pacto. Que fosse feita uma trégua para garantir a nova democracia”. [página 72]
“A utilização por esses autores da noção de Cidadania exige que voltemos à discussão inicial: embora os autores não o explicitem, aqui o conceito de cidadania tenta dar uma explicação alternativa à ideia de que o movimento grevista e de reorganização sindical e político vivido pelos trabalhadores teria um sentido classista. Em vez disso, teria sido uma busca de espaço democrático, limitando-se à (re)conquista de direitos políticos, lembrando a formulação de Marshall para a cidadania política. E, como se pode extrair da frase de Iram Jácome, seria possível agora uma fase “menos conflitiva” entre capital e trabalho. Assim, a conceituação de cidadania vai além de ser uma tentativa de explicitar a luta pela reconquista das liberdades contra a ditadura entre 78 e 84; após a mudança de regime para uma democracia formal, ou o que esses autores chamam “fim da transição”, seria possível uma menor conflitividade entre capital e trabalho, e a cidadania passa a ser identificada com uma meta: o movimento sindical ser aceito como interlocutor para negociar pactos políticos. A cidadania se concretiza ao alcançar certos direitos políticos e sociais e as instituições adequadas à negociação, tanto no que diz respeito às empresas em si quanto às políticas públicas”. [página 100]
“Também faz parte dessa conceituação ideia de que a participação dos sindicatos ou de organizações como as comissões de empresa, centrais etc., deve ser orientada não somente pelos interesses da categoria (assinalados como corporativos), mas, também, em função de uma necessidade social superior aos interesses de sua classe e/ou categoria”. [página 101]
“É uma concepção de cidadania que ignora a divisão da sociedade em classes e que não sai do horizonte dessa sociedade de classes, apenas trata de encontrar um lugar “mais respeitado” para os trabalhadores enquanto cidadãos dentro da sociedade capitalista. Ou, ainda, apresentar seus projetos de desenvolvimento econômico para a sociedade capitalista através de seus sindicatos e centrais, mas sem uma posição independente de classe, como se fosse possível ter propostas de desenvolvimento “neutras”, ou que servissem a todos os setores sociais por igual”. [página 101]
“Essa visão está diretamente relacionada a uma proposta de integração dos sindicatos na sociedade e no Estado capitalista e que as classes sociais sejam vistas como parceiras, aposta também na troca da estratégia do movimento cutista, chamada de “semiconfrontacionista” pela de conflito “pactuado”, de negociações permanentes, em que as greves e lutas não são mais que momentos de desequilíbrio a serem resolvidos para alcançar novo equilíbrio”. [página 101]
“... de uma ação mais conflitiva, observa-se uma tentativa de busca de diálogo, da negociação a todo custo”. [página 102]
“Segundo essa visão, hoje seria possível ter uma política que beneficiasse a todo os setores sociais envolvidos sem tocar nos fundamentos da sociedade produtora de mercadorias.” [página 102]
“A partir do advento do regime democrático, as contradições que atravessam a sociedade capitalista, as características do capitalismo brasileiro, seu alto grau de exploração e de desigualdade são ignorados ou apenas citados; em nome da importância da democracia, o horizonte deveria se limitar a estabelecer acordos possíveis, aceitando a ordem capitalista vigente, o que significaria modificar a estratégia classista e anti-capitalista da CUT dos primeiros anos. Em função disso, se faz uma revisão do primeiro período da CUT, tentando enquadrá-lo na estratégia da cidadania política”. [página 102]
“A nova realidade surgida com a irrupção maciça das greves colocou a possibilidade de uma postura intransigente, anti-patronal, o que se afinava com a concepção política das forças que deram origem à CUT, no sentido de não aceitar a introdução de interesses de classes hostis no seio do sindicalismo, de não sacrificar os anseios dos trabalhadores em função de metas e objetivos dos partidos patronais, em nome da nação, da unidade do povo, como havia sido comum no período populista ou, ainda, a partir de 84, da democracia, como pediam então os líderes da Aliança Democrática e ecoavam as lideranças da Unidade Sindical.” [página 106]
“O classismo que vinha desde o período das oposições se manifestava em uma recusa aos pactos, na afirmação da independência de classe”. [página 106]
“Ainda em 88, na tese aprovada pelo III Congresso da CUT, um dos subtítulos era: “... combater o sindicalismo reformista e de colaboração de classes. O sindicalismo classista se opõe às concepções sindicais que se desenvolveram no final do século passado, nos países centrais do capitalismo, que propunham a adaptação da classe trabalhadora às democracias parlamentares. Isso significa que combatemos o sindicalismo reformista e conciliador de interesses antagônicos, que procura enquadrar as lutas sindicai nos limites alcançáveis dentro do sistema capitalista... ””. [página 106]
“É interessante notar como na formação do PT, muitas vezes, os mesmo propósitos que deram origem à CUT se manifestavam: a afirmação de classe contraposta aos demais partidos, a negação da conciliação com o empresariado e o Estado. Uma questão que norteou todo o sentido da política empresarial para o movimento operário foi a proibição da participação do sindicato como ator na luta política. Tanto é assim, que uma parte da propaganda patronal hostil às greves e conflitos do movimento operário e antiCUT sempre contou com esse ingrediente para tentar indispor setores menos combativos dos trabalhadores e a classe média contra o movimento organizado”. [página 107]
“As outras correntes mais dóceis ao discurso empresarial, como as CGT’s e a Força Sindical costumavam somar suas vozes aos patrões e atacar a CUT com esse discurso. Que os sindicatos não deviam fazer política, que isso divide, que eles não são “políticos” etc.
“Quando o operário deixa de competir com o outro pela sobrevivência e parte para a luta unido ao companheiro está avançando a uma consciência de classe inicial, de que só o seu coletivo pode fazer frente ao patrão e seus aliados. Essa visão de solidariedade e unidade de classe enquanto trabalhador e defensor de uma melhor remuneração para sua força de trabalho, pode ou não evoluir para uma consciência de classe política. No caso brasileiro, essa combinação se deu da forma que poderíamos chamar de clássica, ou seja, surge um grande movimento grevista e, no bojo dessa onda de lutas, um partido político operário e uma nova central sindical expressam essas lutas e o novo movimento operário surgido. Mais uma vez, nada mais distante da ideia de cidadania, de uma parceira entre trabalhadores e empresários enquanto cidadãos com interesses comuns na sociedade.” [página 108]
“Ou questionavam o Estado burguês ou se adaptavam a ele”. [página 109]
“Então, se tratou de substituir a ideia de povo pela cidadania: seria uma espécie de soma dos direitos civis e dos direitos políticos (direito ao voto, liberdade de expressão, de associação), com alguns direitos sociais mais sentidos e que são algumas das grandes carências populares, as quais têm péssimo tratamento por parte do poder público no país, tais como educação, saúde, habitação. Evidentemente, são todas necessidades apremiantes e básicas e como os governantes não se satisfazem, pareceriam transmitir à população, um conteúdo de mudança profunda. Mas além de se passar a ideia de que é possível conquistar e estender ad infinito esses direitos dentro do capitalismo, como Marshall propunha para a Inglaterra, se procura convencer a população que a conquista desses legítimos direitos sociais estaria associada a um trabalho “solidário” de todos e seria exequível através de parcerias entre capital e trabalho. Assim, se volta à ideia-chave do populismo, de que existem interesses estratégicos comuns entre “pobres” e “ricos” em função do bem da sociedade, como era antes da nação. Esta visão estimula, portanto, a colaboração de classes. É uma reação contra a ideia de independência de classe, de união da classe operária e dos explorados enquanto tal, que prevaleceu no interior do novo movimento operário dos anos 80; ela volta a ideias antes aparentemente consideradas superadas: os cidadãos brasileiros não teriam diferenças de classe entre si, ou, pelo menos, elas não seriam antagônicas. Com boa vontade, capital e trabalho poderiam se unir e conseguir bons resultados para todos”. [página 112]
“No VI CONCUT, realizado em 97, a direção nacional já dizia em sua tese: “... 26- A Frente Social pela Cidadania, atendendo aos eixos estratégicos definidos no V CONCUT, busca construir uma política de alianças com outros setores da sociedade, de caráter permanente, de enfrentamento à política neoliberal (...) É o caso das reformas, onde conseguimos elabora uma proposta discutida com empresários sobre reforma tributária...””. [página 114]
“A política dos Pactos Sociais, contestada em sua fundação, teve sua máxima expressão na atuação da CUT a partir da posse de Lula no governo federal. Participando ao lado da outra central, a Força Sindical, junto com as entidades empresariais e o governo, a CUT atual abandonou todo o discurso da década de 80 para abraçar a velha proposta de colaboração de classes, de colocar a negociação e o consenso com a burguesia como estratégia. A mesma Força Sindical que anteriormente era acusada em documentos da CUT com razão, como “agentes do capital” agora é uma parceira na gestão das políticas sociais e na participação no Conselho Econômico e Social”. [página 116]
0 comentários